4 de julho de 2011

A CRÔNICA E O FLANELINHA

A crônica, a meu ver, é um gênero que fica situado no limbo, entre a literatura e o caráter informativo. Trata de uma descrição particular de fatos na linha do tempo.

Falo em descrição de fatos na linha do tempo, pois a crônica nada mais é do que um relato da atividade humana no espectro regido por Cronos, o deus grego criado à imagem e semelhança dos homens.

Mas, afinal, o que é o tempo senão uma convenção humana de medida de variação de movimento no espaço? A cronologia não existe por si só, depende da vivência e observação do homem para vir a ser, assim como os acontecimentos mais banais que preenchem a nossa existência e que podem ser alvo de comentários, as crônicas.

Acontecimentos banais do cotidiano, tais como o desconforto trazido pela “privatização informal de logradouros públicos”, uma expressão eufemística para a atividade dos flanelinhas.

Estava eu numa cidade litorânea próxima, quando, ao estacionar o carro, comecei a perceber alguém no escuro mexendo-se como louco, fazendo gestos e giros com os braços. Dito e feito, era um desses profissionais liberais do trânsito.

Mal havia estacionado o carro, sem necessidade de qualquer auxílio, quando ouvi o “toc-toc-toc” soar no vidro lateral do carro.

Olho para o relógio, são 22h30min de sábado e o que vejo então é um par de incisivos superiores queimados, provavelmente pela fumaça quente do crack.

Abaixo o vidro: - pois não?

- “Déizão” pra estacionar aqui patrão!

Diante do tom imperativo e seguro do rapaz, inicia-se neste momento o raro fenômeno da combustão espontânea em minhas entranhas.

É claro que não adiantaria debater com o mancebo a respeito da natureza pública do espaço de que ele havia decidido tomar como seu, tampouco perguntar se ele tinha crachá de identificação de empresa contratada para explorar estacionamento rotativo.

Olhei para o lado e vi minha mulher pronta para o jantar. Certamente não era hora de discursos ou manifestações acaloradas de indignação.

Respirei fundo, desatei o cinto de segurança e desci do carro procurando falar na mesma sintonia: - “Déizão” não, né meu amigo?

Aqueles olhos opacos então negociaram sem referências: - Pois é né, “déizão” é só pra patrão. Vai cinco mesmo, só pra colaborar com a gente...

Nisso já vi a nota de cinco sendo apontada pela minha mulher. Bastou entregar e ir embora, torcendo para que o calor interno abrandasse.

Na volta, como já era de se esperar, o zeloso profissional cuidador de carros não estava.

Deve ter ido fumar o “cincão”.

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