30 de maio de 2012

O GOSTO DO SUBSOLO



Há algum tempo tive o prazer de conhecer o Maison Nerudiano em Santiago do Chile, um restaurante com espaço subterrâneo para declamação de poesias do Pablo Neruda e shows de Jazz.

Quando estava naquela ampla sala inferior, lembrei-me claramente que desde menino gostava de me esconder embaixo da cama, onde ficava por horas a fio, calado, sem precisar conversar com ninguém. 

Ali, sozinho, debaixo da cama, estava o meu microcosmo infantil, um universo particular, um submundo próprio criado pela imaginação fantasiosa daquela idade.

Dessa mesma época, relembro do desejo de ter um espaço no subsolo que fosse só meu, uma espécie de porão secreto, onde pudesse permanecer alheio a tudo e, ao mesmo tempo, protegido do mundo exterior.

Essa ideia de proteção não ocorre por acaso, afinal, existirá lugar mais protegido do que sob a terra? Os bunkers mais seguros são construídos no subsolo, inclusive para fins de prevenção a ataques nucleares.

Alguns poderiam adjetivar essa preferência infernal (subterrânea) como sombria ou melancólica, porém, o sabor psicológico desse tipo de lembrança vai muito além disso. 

O anseio de proximidade com o subterrâneo é muito mais uma vontade de introspecção, de busca por si mesmo e de depuração da alma.

Aliás, desde a Idade Média os Alquimistas proclamavam visita interiora terrae, retificandoque invenies occultum lapidem, como meio de busca do homem superior (Pedra Filosofal) e da sociedade aperfeiçoada.

Portanto, símbolos como a caverna, o porão, o subsolo, Jonas no ventre da baleia e o crânio vazio, são metáforas do autorrecolhimento que podem funcionar como um lenitivo para a alma e um meio de recuperação e superação das asperezas e dificuldades do mundo real.

No subsolo as imagens se confundem, as pessoas se encontram, as emoções parecem arcaicas, o silêncio é o único amigo e o gosto final é sempre doce.

24 de maio de 2012

FEIRA DE ADOÇÃO NO PRÓXIMO SÁBADO (26.05)

CASAS OU CAIXAS?

Será que sou apenas eu que não entendo de tendências, design e arte, ou é verdade que o reinado da platibanda na arquitetura contemporânea está tornando as casas cada vez mais próximas de caixas.


Foi-se o tempo em que ter uma casa com telhado em meia-água ou duas águas era critério de distinção social. A tendência agora se inverteu. O negócio é esconder o telhado.

Particularmente, não me adapto bem com a ideia. Para mim, casa deve ter cara de casa, como sinônimo de lar, acolhimento e aconchego. Casa mesmo é aquela com formato quase arquetípico, que a criança aprende a desenhar ainda na pré-escola, com telhado aparente, janela, porta, jardim e árvore.

Acho que a padronização inconsciente da cultura humana tem se expressado na arquitetura contemporânea. Hoje o que distingue uma casa da outra, tem sido os detalhes da fachada ou o do ajardinamento, porque há ruas em que se encontram apenas essas tais caixas de alto padrão enfileiradas dos dois lados e, nada mais.

Gosto daquela ideia da casa da infância, dotada de humanidade. Aquela casa que não aspira a perfeição, que dá vazão às paixões humanas, que é acolhedora, protetora e serve de refúgio. Com o fechar de uma cortina, encerra-se o mundo externo.

Diria o psicanalista que estou descrevendo o ventre materno e não uma casa, mas a identificação onírica entre os dois é evidente, como atesta Gaston Bachelard:

“Desde que nos orientemos na sombra, longe das formas, esquecendo a preocupação com as dimensões, não podemos deixar de constatar que as imagens da casa, do ventre, da gruta, do ovo e da semente convergem para a mesma imagem profunda.”

E se as casas sem telhado parecem muito com caixas, o que são os edifícios, senão empilhamentos de caixas habitáveis.

Podemos não perceber, mas estamos vivendo empilhados uns nos outros e também nos locomovemos embalados em caixas automóveis.

Ao que parece, estamos passando por um progressivo movimento de autoencaixotamento, seja porque o aumento da densidade demográfica exige a otimização do espaço-tempo, seja porque a procura por espaço provoca o aumento do seu preço segundo a lei de mercado.

Pode parecer nostalgia, mas tenho a esperança de um dia voltar a viver numa casinha à moda antiga, com telhado aparente, janela, porta, jardim e árvore.

17 de maio de 2012

CÓDIGO DA EXPLORAÇÃO FLORESTAL

Como você agiria se sonhasse em ser um político de expressão nacional e, depois de eleito, surgisse um projeto de lei que viesse a lhe proporcionar muito retorno financeiro para seus negócios pessoais e, de quebra, ainda pudesse garantir apoio para a sua futura reeleição?

É partindo desse tipo de pressuposto (interesse particular), que a proposta do novo Código Florestal ou pior, “Código da Exploração Florestal”, foi aprovada no Senado, com alterações gravíssimas e impactantes.

É evidente que na redação final dessa norma, não foi observado o interesse público por parte dos fieis senadores, tampouco houve imparcialidade entre os interesses ruralistas e ambientalistas.

Agora resta a esperança de um veto substancial por parte da Presidência da República até 25 de Maio.

Mas é importante dar nome aos bois. Nesse cenário caótico de sobreposição de interesses particulares e financeiros, alguns senadores em especial, merecem ser citados: Kátia Abreu, Baliro Maggi (maior plantador de soja do país), Ivo Cassol e Paulo Piau Nogueira (relator do projeto).

Todos são senadores e empresários do agronegócio, mas, sobretudo, cegos peões das grandes corporações que pretendem o lucro a todo o custo, inclusive da biodiversidade, da qualidade de vida e do respeito ao meio ambiente.

Aliás, essa mesma bancada ruralista também tem combatido a proposta de emenda constitucional nº 438/2001, que prevê o confisco de propriedades rurais que se utilizam de mão-de-obra escrava, mas este não é o tema dessa crônica.

Lamentavelmente, caso o funesto Código não seja vetado, restará aos senadores em um futuro não muito distante, a possibilidade de dizer a seus netos ou bisnetos que contribuíram de forma direta para que o Brasil tenha terras nuas a perder de vista, mas não tenha toda a água de que precisa para irrigar os campos secos pelo sol e pela desertificação, bem como que ajudaram o Brasil a deixar de ser o país da biodiversidade, das matas preservadas e da riqueza natural.

Nossa espécie é mesmo arrogante. Achamos que somos proprietários da vida no planeta, que podemos eliminar indiscriminadamente toda e qualquer outra espécie que atravesse o nosso caminho (pois somos superiores e temos todo o direito) e que viveremos com recursos naturais ilimitados e eternos.

É, parece que somente depois que a última árvore tiver caído, o último rio tiver secado e o último peixe for pescado é que vamos realmente perceber que não podemos comer dinheiro.

Então, que pelo menos tenhamos a dignidade de não reclamar do futuro e das consequências de nossas ações irrefletidas, pois a natureza não será nossa algoz, aliás, nem precisa, pois continuamos a ser o nosso próprio lobo.

11 de maio de 2012

10 de maio de 2012

SERVIDÕES BIOLÓGICAS DA LINGUAGEM

Gaston Bachelard, em sua “Poética do Devaneio”, disse que “o mundo é constituído pelo conjunto de nossas admirações.”

Isto é, primeiro o homem admira aquilo que ele encontra, depois analisa, classifica e cria uma palavra indicativa do objeto, através do uso da razão.

Com o artifício da palavra, o gênero humano consegue denominar tudo o que os seus sentidos lhe mostram, atribuindo, inclusive, sexo a vegetais, animais, objetos inanimados ou fenômenos naturais. Para o homem, o mundo se divide em masculino e feminino.

Assim sendo, existem ossos masculinos como o fêmur, o rádio e o crânio, mas também femininos, como a tíbia, as falanges e a mandíbula.

Existem árvores com sexo masculino, como o Baobá, o Cedro e o Pinheiro. Por outro lado, há também as femininas como a Canela, a Imbuia e a Araucária.

Há animais com nomes masculinos como o Morcego, o Gambá e o Tamanduá, mas existem também os com denominações femininas como a Onça, a Capivara e a Cobra.

Mas quem decidiu que uma determinada árvore teria nome masculino e outra, nome feminino? A árvore, em gênero, tem sexo? E os ossos? E as espécies animais? Por que tudo no mundo deve ser macho ou fêmea?

É possível que a linguagem seja dividida nessa matriz dual, porque replica nos objetos e demais seres, aquilo que caracteriza e divide a humanidade, enquanto parcela do mundo animal (animus e anima).

Mas em alguns casos, uma palavra masculina não encontra liame sexual adequado com o objeto designado, como por exemplo a palavra “calor” que, na língua portuguesa é escrita no masculino, mas, segundo a sensibilidade do poeta, deveria ter sido designada no feminino.

Ora, calor é mulher, é acolhimento, é amparo, colo, é a sensação primordial que acompanha o ser humano antes mesmo de nascer no frio masculino deste planeta, tanto que no francês, “calor”, é feminino (la chaleur) e, se é necessário dar sexo a todo o mundo sensível, no caso do calor, ele deveria ser ela.

Já no caso da “água” houve acerto na atribuição de sexo, pois a água é toda feminina, líquida, mutante e imprecisa. Henri Bosco demonstrou o aspecto feminino da água em um mergulho no lago:

“Somente ali eu conseguia às vezes libertar-me do mais negro de mim mesmo, esquecer-me. Meu vazio interior se preenchia…A fluidez do meu pensamento, onde até então eu tentara encontrar a mim mesmo, parecia-me mais natural e assim menos amarga. Por vezes eu tinha a sensação, quase física, de um outro mundo subjacente e cuja matéria tépida e móvel, aflorava sobre a extensão melancólica de minha consciência. E então, como a água límpida das lagoas, ela estremecia.”

Da mesma forma, acertou quem chamou “maçã” de mulher. Nos seus “Sonetos a Orfeu”, Rilke trata do assunto:

"Ousai dizer o que chamais de Maçã.
Essa doçura que primeiro se condensa
Para, com uma doçura erigida no gosto,
Chegar à claridade, ao despertar, à transparência,
Tornar-se uma coisa daqui, que significa o sol e a terra.”

Ao que parece, assim como ocorre com os transgêneros humanos, que não possuem o corpo adequado à sua psique, também parte dos elementos do mundo sensível recebeu designações que não guardam consonância com a sua essência ontológica e, principalmente, poética.

5 de maio de 2012

ACRIANÇAMENTO

Concordo com o Rubem Alves quando ele diz que, em vez de entender a criança como um ser limitado, que precisa ser educado e instruído, deveríamos vê-la também como um estado existencial precioso e que poderia ser resgatado pelo homem dito “adulto” sempre que sentir-se esgotado ou desanimado com a realidade.

Esse retorno à essência de criança não significa uma infantilização, mas sim um desejo de voltar a sentir-se igual aos demais, de despojar-se dos preconceitos, rotulações e etiquetas ilusórias impostas pela (contra-)cultura contemporânea.

Nietzsche foi um filósofo-criança e mantém a sua atualidade, justamente por ter assumido essa postura essencial. Na sua multicitada obra “Assim Falou Zaratustra”, ele demonstra que também se fazia criança para pensar:

“Mudei-me da casa dos eruditos e bati a porta ao sair. Por muito tempo a minha alma assentou-se faminta à sua mesa. Não sou como eles, treinados a buscar o conhecimento como especialistas em rachar fios de cabelo ao meio. Amo a liberdade. Amo o ar sobre a terra fresca. É melhor dormir em meio às vacas que em meio às suas etiquetas e respeitabilidades.”

Mas o acriançamento é também a vontade de reencontrar-se com o novo, com os sabores mágicos, os lugares fantásticos, as pessoas gigantes, os cheiros intrigantes e as pessoas interessantes, pois é assim que a criança vê o mundo.

É o propósito de livrar-se da preocupação, da culpa, da pressa e da pressão do tempo, do trabalho e da família. É a visualização do mundo pelos olhos do poeta, de quem redescobre ou reinventa um animal, uma palavra ou um objeto.

É questionar os motivos e as razões de cada coisa, é filosofar pela raiz, é ver o mundo de ponta-cabeça ou como em um negativo de fotografia.

É buscar o encantamento com as coisas simples da vida e o contentamento fácil com um olhar amigo, um sorriso, um abraço ou uma lembrança.

É a ideia de redesenhar uma vida que se acinzenta diante das dificuldades que nós mesmos nos impomos uns aos outros, de renovar a respiração pesada do ar tragado com dificuldade, de erguer o rosto diante das adversidades e de relaxar o semblante carregado.

Quem sabe a infância não seja apenas parte do passado, mas sim de um futuro que está atrás de nós, que nos integra e que pode vir a fazer parte do que ainda poderá vir a ocorrer.

O NEÓFITO (GUSTAVE DORÉ)