10 de maio de 2012

SERVIDÕES BIOLÓGICAS DA LINGUAGEM

Gaston Bachelard, em sua “Poética do Devaneio”, disse que “o mundo é constituído pelo conjunto de nossas admirações.”

Isto é, primeiro o homem admira aquilo que ele encontra, depois analisa, classifica e cria uma palavra indicativa do objeto, através do uso da razão.

Com o artifício da palavra, o gênero humano consegue denominar tudo o que os seus sentidos lhe mostram, atribuindo, inclusive, sexo a vegetais, animais, objetos inanimados ou fenômenos naturais. Para o homem, o mundo se divide em masculino e feminino.

Assim sendo, existem ossos masculinos como o fêmur, o rádio e o crânio, mas também femininos, como a tíbia, as falanges e a mandíbula.

Existem árvores com sexo masculino, como o Baobá, o Cedro e o Pinheiro. Por outro lado, há também as femininas como a Canela, a Imbuia e a Araucária.

Há animais com nomes masculinos como o Morcego, o Gambá e o Tamanduá, mas existem também os com denominações femininas como a Onça, a Capivara e a Cobra.

Mas quem decidiu que uma determinada árvore teria nome masculino e outra, nome feminino? A árvore, em gênero, tem sexo? E os ossos? E as espécies animais? Por que tudo no mundo deve ser macho ou fêmea?

É possível que a linguagem seja dividida nessa matriz dual, porque replica nos objetos e demais seres, aquilo que caracteriza e divide a humanidade, enquanto parcela do mundo animal (animus e anima).

Mas em alguns casos, uma palavra masculina não encontra liame sexual adequado com o objeto designado, como por exemplo a palavra “calor” que, na língua portuguesa é escrita no masculino, mas, segundo a sensibilidade do poeta, deveria ter sido designada no feminino.

Ora, calor é mulher, é acolhimento, é amparo, colo, é a sensação primordial que acompanha o ser humano antes mesmo de nascer no frio masculino deste planeta, tanto que no francês, “calor”, é feminino (la chaleur) e, se é necessário dar sexo a todo o mundo sensível, no caso do calor, ele deveria ser ela.

Já no caso da “água” houve acerto na atribuição de sexo, pois a água é toda feminina, líquida, mutante e imprecisa. Henri Bosco demonstrou o aspecto feminino da água em um mergulho no lago:

“Somente ali eu conseguia às vezes libertar-me do mais negro de mim mesmo, esquecer-me. Meu vazio interior se preenchia…A fluidez do meu pensamento, onde até então eu tentara encontrar a mim mesmo, parecia-me mais natural e assim menos amarga. Por vezes eu tinha a sensação, quase física, de um outro mundo subjacente e cuja matéria tépida e móvel, aflorava sobre a extensão melancólica de minha consciência. E então, como a água límpida das lagoas, ela estremecia.”

Da mesma forma, acertou quem chamou “maçã” de mulher. Nos seus “Sonetos a Orfeu”, Rilke trata do assunto:

"Ousai dizer o que chamais de Maçã.
Essa doçura que primeiro se condensa
Para, com uma doçura erigida no gosto,
Chegar à claridade, ao despertar, à transparência,
Tornar-se uma coisa daqui, que significa o sol e a terra.”

Ao que parece, assim como ocorre com os transgêneros humanos, que não possuem o corpo adequado à sua psique, também parte dos elementos do mundo sensível recebeu designações que não guardam consonância com a sua essência ontológica e, principalmente, poética.

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